A expressão “Cam viu a nudez de seu pai” (Gênesis 9:22) é uma das passagens mais enigmáticas da Bíblia, e teólogos, rabinos e estudiosos têm debatido seu significado por séculos.
Gênesis 9:20–25
20 Noé, que era agricultor, foi o primeiro a plantar uma vinha.
21 Bebendo do vinho, embriagou-se e ficou nu dentro da sua tenda.
22 Cam, pai de Canaã, viu a nudez do seu pai e foi contar aos seus dois irmãos que estavam do lado de fora.
23 Mas Sem e Jafé pegaram um manto, colocaram-no sobre os ombros e, andando de costas, cobriram a nudez do pai, sem olhar para ele.
24 Quando Noé acordou do efeito do vinho e descobriu o que seu filho caçula lhe havia feito,
25 disse: “Maldito seja Canaã! Seja o servo mais baixo dos escravos de seus irmãos”.
Interpretação literal
Cam teria visto literalmente Noé nu em sua tenda, em estado de embriaguez.
O pecado, nesse caso, não seria o ato de ver, mas o desrespeito, a zombaria e a exposição do pai diante dos irmãos.
O comportamento de Cam contrasta com o de Sem e Jafé, que cobrem o pai com respeito.
O Midrash (tradição judaica) destaca que Cam teria agido com desdém, quebrando o mandamento implícito de honrar pai e mãe.
Interpretação eufemística (linguagem codificada para ato sexual)
A expressão “ver a nudez” é frequentemente usada na Bíblia como um eufemismo para relação sexual (Lev18 e 20).
“Não descobrirás a nudez de teu pai nem a nudez de tua mãe; ela é tua mãe; não descobrirás a sua nudez.” (Lev 18:7).
Três hipóteses teológicas principais
Cam teve relação sexual com Noé (hipótese homoerótica)
Alguns estudiosos sugerem que Cam abusou sexualmente de Noé.
Isso explicaria por que Noé, ao acordar, soube o que lhe fizera seu filho — linguagem ativa, não apenas visual.
A nudez em si não justificaria tamanha maldição, mas um abuso sim.
Embora essa visão não seja dominante nas tradições cristãs, é explorada em escritos judaicos antigos e por alguns acadêmicos modernos.
Cam teve relações com a esposa de Noé (sua mãe)
Baseia-se na interpretação de Levítico 20:11: “Se um homem se deitar com a mulher de seu pai, descobriu a nudez de seu pai...”.
Essa leitura sugere que “ver a nudez do pai” equivale a possuir a esposa do pai.
Implicaria que Cam buscou usurpar autoridade familiar, como Absalão fez com as concubinas de Davi (2 Sam 16:22).
A punição cairia sobre Canaã, fruto possível dessa união incestuosa, explicando a maldição.
Castração de Noé
Um Midrash (Bereshit Rabbah 36:7) afirma que Cam castrou Noé para que ele não tivesse mais filhos, garantindo que a herança fosse dividida apenas entre os três.
Noé acordaria e percebe que foi mutilado.
Nesse contexto, a punição a Canaã seria simbólica: Cam impediu Noé de ter mais filhos, então seu filho seria amaldiçoado.
Por que Canaã é amaldiçoado, e não Cam?
Canaã seria fruto do ato pecaminoso (incesto, adultério, ou outro).
Cam já havia sido abençoado por Deus (Gênesis 9:1), e Noé, mesmo sendo profeta, não poderia anular a bênção divina, então amaldiçoa a descendência.
Canaã representa a futura nação dos cananeus — que seriam inimigos de Israel — e o texto antecipa a condenação desses povos.
Forma literária de justificar a conquista de Canaã pelos hebreus — uma etiologia teológica.
Tradições judaicas e cristãs
O Judaísmo rabínico: debate extensivamente as três hipóteses (ver, castrar, ou abusar).
O Cristianismo patrístico: maioria dos Pais da Igreja via o pecado como desrespeito e escárnio, evitando interpretações sexuais mais pesadas.
A Teologia moderna: aberta à reinterpretação simbólica, literária e cultural, com leituras críticas sobre como o texto reflete valores da época.
O texto de Gênesis 9:22 é ambíguo por intenção ou tradição, e a linguagem enigmática abre margem para múltiplas leituras. Noé é mostrado vulnerável, Cam é punido indiretamente através de seu filho, e os irmãos obedientes são exaltados.
Cada interpretação revela diferentes aspectos sobre honra, autoridade patriarcal, sexualidade, e narrativa teológica. A escolha da leitura depende muitas vezes da tradição teológica à qual se adere — seja judaica, cristã ortodoxa, crítica moderna, ou simbólica.